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A luta contra o coronavírus tem o rosto de mulheres

Elas são quase 85% no setor de enfermagem: “Tenho muito orgulho das mulheres que atuam na Saúde como eu, mas também tenho medo de contaminar meus familiares”

A técnica de enfermagem Luciana Martinez“Medo eu tenho todo dia”, diz Luciana Martinez, 42. No entanto, de segunda-feira a sábado, esta técnica de enfermagem supera o temor e deixa o filho, o marido e o sogro em casa, na zona norte de São Paulo, e vai trabalhar seus dois turnos em hospitais (um da rede pública e um privado) onde se dedica a atender pacientes infectados pela covid-19. No total, ela passa 12 horas por dia cercada de jovens, idosos e às vezes famílias inteiras com coronavírus. Luciana faz parte da linha de frente do combate à doença, em uma trincheira na qual a imensa maioria dos soldados são mulheres. Segundo relatório do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e da Fundação Oswaldo Cruz, 84,7% dos auxiliares e técnicos de enfermagem são do sexo feminino. “Tenho muito orgulho das mulheres que atuam na saúde como eu, no enfrentamento à covid-19. Fico até emocionada de falar da profissão, porque sinto que a profissão que me escolheu”, diz Luciana.

Do ponto de vista psicológico, estes profissionais precisam se equilibrar no trabalho e em casa. “Por mim eu nem voltaria pra casa. Além do medo de eu pegar a doença, tenho muito medo de transmitir para minha família”, afirma Luciana. “Eu chego em casa e já tiro a roupa no quintal e entro de toalha, vou direto para o banho. A roupa que eu estava vestindo vai para a máquina de lavar na hora”, explica. Para minimizar ao máximo a possibilidade de que algo dê errado quando chega dos hospitais —tendo em vista especialmente a presença do sogro idoso— sua família adotou uma versão radical do isolamento social. Cada um em um cômodo e sem contato físico nenhum. “Me afeta demais psicologicamente não poder abraçar meu filho de 13 anos. Isso me dói demais. Ele entende o porquê de eu não dar mais beijo nele, mas fica agoniado com isso tudo, ainda mais sem poder sair de casa”, diz emocionada.

Estar o dia inteiro cercado por pacientes com uma doença sem cura cobra também um preço físico. Até o momento, de acordo com levantamento feito pelo Cofen e divulgado na segunda-feira (27), 4.602 profissionais de enfermagem foram afastados por suspeita da covid-19, e 57 morreram pela doença ou em casos suspeitos mas ainda não confirmados. Destes óbitos, 32 (ou 56%) são mulheres. “Esta é apenas a ponta do iceberg”, diz o chefe do departamento de Gestão do Exercício Profissional do Conselho, Walkírio Almeida, tendo em vista que as ações de fiscalização do órgão alcançaram, até o momento, 27% do total de profissionais da área. Segundo ele, foram recebidas mais de 4.590 denúncias, boa parte delas referente à falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) para as equipes de enfermagem.

Nos hospitais, o grande desafio para a equipe médica é no momento de desparamentação, ou seja, na hora de tirar os equipamentos de proteção individual usados durante o trabalho: óculos, máscara N95 (que cobre a boca e nariz), máscara facial, avental impermeável e luvas. “É muito fácil se contaminar nessa hora se você não seguir um protocolo rígido, uma ordem determinada do que tirar primeiro”, afirma Luciana. “O fundamental é calma e foco. Mas infelizmente não existe risco zero”, diz.

O trabalho com pacientes da covid-19 também expõe Luciana aos dramas pessoais das famílias de pessoas infectadas. “Tem um caso que mexeu comigo, o de um casal de idosos na casa dos 80 anos. Os dois chegaram juntos com sintomas e foram direto para a unidade de tratamento intensivo. A esposa melhorou, mas ele infelizmente faleceu. Para não desestabilizá-la emocionalmente e comprometer sua melhora, a família não contou que ela perdeu o marido. E ela pergunta muito dele, e eu não posso contar a verdade”, diz. Em alguns casos, famílias inteiras são internadas. “Teve um paciente que foi internado com os pais. Ambos morreram”, lamenta. “A gente vê paciente jovem sem comorbidade que está com a doença e está em situação bem ruim na UTI”, conta, desmistificando o argumento de que a covid-19 é uma doença que afeta apenas idosos.

Luciana Martinez em um dos hospitais onde trabalhaIndagada sobre como é trabalhar neste ambiente, Luciana resume: “Não posso deixar de ir trabalhar. O momento pede. Eu acordo e acho que estou num filme, mas tento fazer o meu melhor para que esse filme tenha final feliz”. Sobre as aglomerações que acontecem na cidade mesmo com o número recorde de mortos, ela diz que “as pessoas não tem noção do que está ocorrendo no hospitais”, e termina com um “fiquem em casa!”.

Fraldas para trabalhar e renascimento

Com a escassez de equipamentos de proteção e o risco de contaminação na hora da desparamentação, muitas enfermeiras e técnicas acabam tendo que recorrer a métodos drásticos para conseguir ficar 6 horas seguidas sem urinar ou usar o banheiro. “Acabamos usando fralda pra poder aguentar. Não somos sexo frágil, aguentamos muito mais do que os homens em várias coisas, inclusive muitos homens também estão trabalhando de fralda”, afirma Joana, que pediu para ter seu nome e o do hospital onde ela atende mantidos em sigilo. Ela é técnica de enfermagem em uma unidade de referência no tratamento ao coronavírus em Fortaleza, no Ceará, Estado que ocupa a terceira posição no número de casos confirmados (atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro), e que anunciou, em 14 de abril, o colapso de seu sistema de UTIs.

Assim como Luciana, Joana teme contaminar a mãe, idosa e cardíaca. “Pensei até em sair de casa. Muitos fizeram isso, saíram de casa para não contaminar os familiares, mas isso tem um custo financeiro alto”, diz. Ela chegou a apresentar sintomas da doença, e por isso foi afastada. “Fiquei isolada 14 dias em casa sem sair do quarto, morrendo de medo de morrer e de infectar minha mãe”. O resultado do exame saiu na segunda-feira: negativo. “Agora é voltar para a batalha”.

Para algumas profissionais, os pais mesmo distantes são motivo de preocupação. “A minha mãe, que mora no interior do Estado, não queria que eu fosse mais trabalhar, ela tinha medo de que eu pegasse a doença”, diz Ivanise Freitas da Silva, 29, enfermeira do hospital Leonardo Da Vinci, em Fortaleza. “Mas eu expliquei pra ela que eu estou concentrada, e pensando que só depende de mim para eu não me contaminar”. Com mais de seis anos de atuação em UTIs, Ivanise está confiante: “Eu já tenho visto muitos pacientes saírem da UTI. Eu vejo o renascimento também, não só a morte pelo coronavírus, e isso dá esperança para seguir lutando”.

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El País